segunda-feira, 4 de abril de 2011

Uma Sopa

São 10h da manhã e ele está dormindo. Dentro dos seus sonhos ele foge de dezenas, talvez centenas de abelhas. Elas não desistem de persegui-lo por mais rápido que ele corra. E elas fazem um barulho horrível, um 'ZZZZ" ensurdecedor. Agora já são milhares de abelhas, o zumbido fica ainda pior 'ZZZZZZZZZ!'. Ele precisa achar um rio, um lago, enfim, água! Rápido!!

ZZZZZZZZZZZZ!!!

"ZZZZZ!", toca a campainha. Ele demora uma fração de segundos pra se localizar. "Onde estou?! Que dia é hoje?! Tenho aula?!". São centésimos de segundo de agonia e desespero. Mas também são milésimos de segundo de liberdade - nada mais importa, a noção já fora embora, sou apenas um corpo.

Aos poucos o quebra-cabeça vai sendo solucionado. Por algum motivo ele está dormindo no sofá e por algum motivo sua cabeça doi e seu corpo pede socorro. Ah, sim, a noite anterior deve ter algo relacionado com isso. Duas pessoas estranhas entram no apartamento carregando um aspirador em pó e perguntam algo indecifrável para aquela hora da manhã. Ele apenas responde "sim, claro!". Os dois rapazes atravessam a sala, sobem as escadas e ligam o equipamento que carregavam. O zumbido das abelhas era muito mais prazeroso que aquele que agora ouve. Saudades de seus sonhos, quem nunca teve... 

Em apenas 2 minutos, ou menos, o serviço fora feito e os dois figurantes deixam o palco desejando um bom dia ao personagem principal.

O bom dia começou com ele lutando para levantar-se do sofá e sofrendo para chegar ao banheiro. Lá ele senta-se na privada e vê o mundo girar. E como gira, e como dá voltas esse mundo. Com muito sacrifício consegue tomar um banho, mesmo que cada gota de água rasgue sua pele à medida que vai escorrendo pelo seu corpo. Na sua cabeça só há espaço para arrependimentos e promessas de que isso nunca irá se repetir. "Ah, como a vida é sem graça, como tudo é superficial, como as pessoas são sanguessugas, como tudo é lento, arrastado e desinteressante..."

Por fim, devidamente arrumado, percebe que tem fome. Há de comer. É um humano e humanos sobrevivem de alimentos, entre outras coisas. Abre sua geladeira e enxerga pão, ovos, queijo, ketchup e cebolas. Seu estômago manda um recado ao seu cérebro "Isso não! Isso é impossível agora". Ele pensa em como a natureza é injusta, pois ele necessita comer mas ao mesmo tempo não pode, não é capaz. Ah, se todas comidas fossem vendidas em formatos de pílulas, estilo vitaminas ou algo similar, mas contendo todos os nutrientes necessários para o bom funcionamento de nossas habilidades. Tudo seria mais simples e rápido. Claro, teriam aqueles que contestariam essa ideia pois o prazer em comer deixaria de existir. Mas nesse momento o prazer em comer não está em suas prioridades, ele só precisa de algo que o deixe instantaneamente vivo novamente.

Decide vasculhar a geladeira mais uma vez. Atrás das cebolas encontra algo diferente. Tira as cebolas da frente daquele objeto misterioso e se depara com uma sorridente garrafa de vodka. Um sorriso sarcástico, claro. Seu estômago embrulha e implora para mandar algo para fora. Sorte que ele está há algumas horas sem comer, então não há perigo de sujar o chão recém limpo pelos dois sujeitos estranhos. Fechada a magra geladeira, passada as náuseas, uma imagem salvadora e iluminada surge em sua cabeça: daria tudo por uma sopa. Uma sopinha. Bem quentinha, bem cremosa, perfeitamente temperada. Poderia ser de batatas, com fatiazinhas bem macias daquele tubérculo sendo suavemente mastigados pelos seus ferozes e necessitados dentes. Ou então poderia ter pedacinhos suculentos de carne, não importava o tipo, apenas carne. Mas teria que ser pedacinhos pequenos mesmo, tipo guisado, senão seu organismo teria que trabalhar demais pra fazer a digestão. Ah, e se tivesse um temperinho verde pra dar aquele sabor especial, aí sim seria perfeito... Hmm, interessante como as pessoas entram em contradição tão rapidamente. Quem seria tão idiota e insensível a ponto de querer se alimentar apenas de pílulas?!

Partiu, então, em busca de seu idealizado objetivo. E já sabia até onde encontrá-lo! Obviamente seria no restaurante ao lado de seu prédio, pois assim o calvário seria menor. Chama o elevador. Pra variar, ele não está no andar em que nosso amigo se encontra. Aliás, o elevador do seu prédio é capaz de extinguir qualquer probabilidade. Sempre que precisa-se dele no terceiro (e último) andar, ele econtra-se no térreo. Sempre quando necessita-se dele no térreo, ele está no terceiro.

Após longa espera, abrem-se as portas da esperança. Ele entra na caixa metálica e aperta o número "0", que estranhamente significa térreo. O desespero toma conta no espaço de 1m²: havia esquecido sua chave dentro do seu quarto. Teria que voltar, tocar a campainha e acordar seu colega de quarto. Seu colega de quarto ficaria irritado com tamanha afronta e começaria a sabotá-lo. Talvez como forma de vingança tentasse roubar seus pertences, ou então colocasse um vírus em seu computador. Sua vida se tornaria um inferno, teria que procurar outro lugar para morar. Estava completamente perdido...

Ainda no elevador resolve mexer no seu bolso. Ah, a chave estava ali! Incrível! Que alívio... Tenta se lembrar do momento em que a colocou no bolso mas logo desiste. Não faz ideia. "Curioso como às vezes agimos como legítimos robôs", pensa. "São ações meramente automáticas. Não raro até nossos pensamentos seguem determinada programação", conclui desanimado.

Sai do elevador e dirige-se à porta da recepção. Antes é obrigado a passar pelo pátio do prédio e lá observa coisas estranhas. Há pessoas vestidas de noivas, há seres fantasiados de Elvis Presley, há crianças brincando com bola e gritando, há até mesmo câmeras filmando isso tudo. Nada disso chama sua atenção, nada disso tem alguma importância. Mesmo que uma espécie rara de dinossauro passasse na sua frente, ele não daria bola (não que existam muitas espécies de dinossauros não raras nos dias de hoje...). Ele tem apenas um objetivo e está determinado a alcançá-lo. Ele quer - e como quer! - uma sopa.

Já está na rua e caminha para o restaurante vizinho. Ele sabe que esse restaurante tem a fama de ser caro, mas  não deve ser tanto assim, as pessoas costumam exagerar um pouco. Chega na frente do local e lê o quadro escrito a giz: "Promoção - salada por apenas 12 merckels". Doze merckels por uma salada?? O mundo capitalista não é nada justo. 

E assim ele muda seus planos e decide procurar outro lugar que venda sopas por um preço justo, ou, no mínimo, acessível. Caminha pela rua como um zumbi, nada enxerga e nada escuta. A parte humana que um dia existira em seu corpo já não encontra-se mais presente, agora é apenas um animal seguindo seu instinto de sobrevivência. Avista um lugar chamado "Super Sopa". Seu coração bate mais forte, seu cérebro volta a funcionar e a hipotetizar. Certamente naquele recinto eles devem ter todos os tipos de sopa existentes no mercado. Com certeza desfrutará da melhor sopa já degustada em sua vida. Afinal, não é qualquer lugar que possui a coragem e o respeito necessário para auto denominar-se "Super Sopa". 

Aproxima-se do paraíso, entra, checa o cardápio. Peixe e batatas, salmão, peixe especial com batatas, porção grande, porção pequena, bacalhau e batatas, apenas batatas, peixe com cebolas e batatas... ONDE ESTÃO AS SOPAS??? Não existem sopas. Não existe sequer UMA sopa no restaurante chamado "Super Sopa". Tenta entender por que às vezes o ser humano é tão cruel, tão incompreensível com o sentimento dos outros, a ponto de não vender sopas em um lugar em que obrigatoriamente tal negócio deveria ser realizado. Desiste. Sua abstinência de comida e a complexidade de seus pensamentos não o permitem encontrar a resposta. Volta para a rua e continua sua busca ao tesouro.

Segue caminhando pela rua sem destino certo. Durante o percurso acizentado, encontra muitos restaurantes, inúmeras opções, o que significam escolhas a serem feitas. Às vezes escolhas são ruins, escolhas cansam, escolhas doem. Requerem decisões e responsabilidade pelo seu resultado, o que geralmente não é de nosso agrado. Não sabe para onde ir, não sabe onde mais tentar a sorte. Está cansado, pensa inclusive em voltar para casa com a missão incompleta. Continua, entretanto, sua jornada...

"Sopa de batata com pedaços de carne: 4 merckels". Talvez seja uma miragem. Esfrega seus olhos, lê novamente. "Sopa de batata com pedaços de carne: 4 merckels". Se estivesse vivo, se não fosse um zumbi, choraria. Não chora, apenas caminha, mas dessa vez caminha com vontade, com gana. Tudo começa a ficar mais colorido, a vida ganha uma razão de existir. Ah, que dia lindo, que ar maravilhoso! Como é bom estar aqui, olha como aquelas crianças são lindas brincando na grama, que por sinal é incrivelmente verde!!!

Dá passos firmes em direção ao balcão. Não pensa - as palavras apenas saem da sua boca como se seus lábios tivessem vida própria, como se fossem uma máquina. Máquina que são, cometem erros e misturam idiomas diferentes. Perdoável, pois a excitação é grande, é gigante. Perguntam a ele se ele deseja pão para acompanhar a sopa. Seriam eles capazes de tamanha generosidade? Pão com a sopa?! Como o ser humano é bondoso, como é compreensível com os seus similares, sempre entendendo as dificuldades alheias... Claro que ele aceita! Muito obrigado, meu amigo!

De posse do seu bem mais precioso, segurando-o firme com a duas mãos, procura um lugar livre para sentar-se na parte de fora do restaurante, sob sol que infelizmente está coberto por nuvens. Sem dificuldades, encontra um assento. Senta-se. Respira. Olha para sua sopa, admira-a por alguns instantes. Como é bela, como é perfeita, como é viscosa. Agarra sua colher e come. Come como nunca tinha comido antes. Devora. Se pudesse não utilizaria colher, beberia tudo direto da tigeja, sem pudor nem culpa. Controla-se. Vai saboreando cada colherada ao máximo. De vez em quando molha o pãozinho no líquido sagrado e mastiga aquela combinação perfeita com suave ardor. Vai sorvendo cada gota daquela sopa maravilhosa. Sente todos os nutrientes sendo absorvidos pelo seu organismo. Imagina seu coração bombeando com extremo alívio um sangue revitalizado, um sangue vermelho brilhante, para as demais partes de seu corpo. Está realizado, está deliciado e não precisa de mais nada. Está apenas completamente feliz.

Faltam apenas duas colheradas para terminar sua refeição e já se dá por satisfeito. Obviamente irá terminar o serviço, pois não será sacrifício algum. Olha para seu lado e percebe que há uma latinha de Coca-Cola no chão, há uns 5 metros de si. Por algum motivo, a latinha vermelha chama sua atenção. Analisa com maior cuidado e percebe que há uma abelha sobrevoando as redondezas daquele objeto. A abelha efetua alguns rasantes, alguns mergulhos e finalmente toma coragem de aproximar-se do cilindro metálico.

Com toda a calma do mundo, com a suavidade de uma pena, a abelha pousa. Sem pudor nem culpa, ela caminha até a boca da latinha. Ela encontra algumas gotas da sua refeição favorita e as sorve ferozmente, com a intensidade do voo de uma lagarta recém descoberta borboleta. Ela também está realizada. Está apenas completamente feliz.

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E nesse momento, as nuvens cedem espaço ao poderoso brilho do sol. Um horizonte infinito e iluminado fora revelado. Um céu azul e promissor fora encontrado. 

Tudo isso graças a uma sopa.


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