quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Apunhalado pelas Costas (ou como perdi o meu amor)

Hoje vou contar como sofri minha primeira desilusão amorosa aqui em Dublin. Na verdade, nós 3 sofremos. E muito.

Era uma noite amena de quase verão, uma noite de alegria mas também de despedidas. Despedidas dos nossos melhores amigos espanhóis. Houve uma grande festa na casa do Oscar, mais de 100 pessoas em um apartamento em que não cabe nem 40. Teve gente transbordando pela escada do prédio. Polícia também teve, claro. Reza a lenda que houve 10 denúncias para a Garda (polícia irlandesa), todas requisitando o fim da nossa celebração. E assim foi feita a vontade de deus, ou seja, do povo. Fim de festa, todo mundo pra fora. Mas nesse momento ninguem mais se importava com nada mesmo. Tudo é lindo, a vida é bela e somos apenas emoção. Razão? Descartamos Descartes da nossa dimensão.

Madrugada fria de um quase inverno, grande parte do grupo ainda junto dando os últimos abraços e as últimas calorosas declarações de amizade. Acompanhamos o Oscar até o táxi na O`Connell Street e mais um abraço foi dado. "Boa viagem, Oscar, nos aguarde para o Natal em Madrid.". Após o aceno final, ainda desolados, avistamos, do outro lado da rua, aquele que mudaria a nossa vida por alguns meses. Sozinho, abandonado, triste, melancólico. Estava lá, estático, o nosso grande futuro amor: um carrinho de supermercado. Repare que este é um item raro na terra da Guinness, pois para utilizar tal meio de transporte dentro do supermercado a pessoa precisa colocar uma moeda e ela só consegue a moeda de volta caso devolva o carrinho no seu devido lugar. Uma espécie de "depósito de segurança". Por mais que seja alguns centavos, quando dinheiro é envolvido as pessoas pensam 10 vezes mais em seus atos. Já quando Euros são envolvidos, as pessoas pensam 25 vezes mais.

Foi amor à primeira vista. Minhas pernas tremeram, faltou-me o ar, meu coração explodiu. Corri para o meu - para o nosso! - carrinho como alguém que corre para acessar suas mídias sociais após um longo período de 2 horas fora de casa. Pulei dentro dele, pois senti que exatamente assim ele queria que eu fizesse. E eu o fiz. Nisso os guris se aproximaram e, com os olhos brilhando, começaram a me empurrar, começaram a me girar. Gira, gira, gira, girassol... Vento na cara, frescor de amor. Liberta emoção, tu é o rei do mundo... Êxtase puro, um feito para o outro. Laika e combo.

Passado o primeiro momento de entorpecimento passional, seguimos então com a Jema (leia-se "Rema" pra ficar menos esquisito) para acompanhá-la até sua casa - sem desgrudar do carrinho, óbvio. Falando nisso, a Jema foi uma das grandes personagens da nossa viagem. Espanhola, casada, mais velha que nós mas com um coração muito especial. E eu estou sendo sincero. Possuia um inglês quase fluente, utilizando gírias locais que nos impressionava pela sua coerencia, tais como "a very kiss for guys" quando queria se referir a "um grande beijo para os meninos".

Foram algumas centenas de metros coloridos que percorremos. Trocávamos fervorosamene entre nós 3 a vez do piloto do carrinho. Todos queriam sentir um pouquinho daquele prazer infinito. A Jema observou o nosso encanto e comentou com seu amigo Aitor - em off - uma frase marcante, que está guardada na memória do Vico até hoje e que ficará para sempre: "Olha para esses meninos, Aitor! São seres humanos sinceros, puros. Eles não se importam com dinheiro, não se importam com status. São apenas felizes" (tradução livre do original "See for boys, Aitor! Human are pure, have dont worry because money but not status so. They like just happy!"). Mal sabia ela que o que ela estava vendo não era apenas uma demonstração de felicidade, mas de amor. Dos fortes.

A nossa primeira noite foi inesquecível, como toda primeira noite deve ser. Mas o melhor estava por vir: dias, semanas, talvez meses de deleite. Cuidávamos do nosso carrinho como um jovem cuida de sua carteira na madrugada Viamonense. Era o nosso bem mais precioso. Utilizávamos como sofá, às vezes como cama. Também como mesa e varal para secar roupar. Porta-mochila, chapelaria... Mil e uma utilidades. Tinhamos planos para o futuro também. Não víamos a hora de levá-lo para passear nas ruas de Dublin, para que ele pudesse admirar o que nunca tinha enxergado. Assim ele poderia andar na chuva, no frio, na neve... E quem sabe até levaríamos ele para fazer o que ele mais gostava: carregar sacolas de compras...

 

...Infelizmente, o destino nos pregou uma peça, e essa foi das grandes. Foi quando o lobo saiu da sua fantasia feita de pele de cordeiro e mostrou suas garras asquerosas.

Estávamos na parte final da nossa Eurotrip. Havíamos deixado a nossa outra metade da laranja em casa, pois dizia ela que tinha medo de aviões. Bobinha... Como não nos sentíamos confortáveis em deixá-la sozinha em casa por dias e mais dias, incubimos nosso amigo Paluza de verificar seguidamente se estava tudo bem com  a nossa amada. Numa dessas visitas, o Paluza encontrou um bilhete em cima da nossa mesa. Era um bilhete do PJ, o nosso Landlord, o proprietário do nosso imóvel alugado. O Paluza nos ligou e falou que o bilhete dizia algo sobre o carrinho, mas ele não havia conseguido traduzir. O PJ sempre foi um senhor muito gente boa, muito simpático e divertido (aliás, talvez ele mereça um texto só para ele aqui). Seu bigodinho transmite segurança e ele sempre foi muito ágil quando precisávamos de uma ajuda. Portanto, não demos muita bola para o tal bilhete, apenas pensamos em 3 possibilidades sobre o que estaria escrito:

1 - "Eaí meus inquilinos, como vocês estão?! Curtindo essa Eurotrip?! Puxa, vim pegar o dinheiro do aluguel e percebi que agora vocês tem um carrinho de supermercado no apartamento. Que demais, adorei a idéia!!"

2 - "Fala meus queridos brasileiros, tudo certo?! Nossa, um carrinho de supermercado!! Só vocês mesmo, hein! Vê se eu posso, hahahaha..."

3 - "Um carrinho de supermercado?! Eu sempre quis ter um, vou aproveitar que vocês não estão aqui para roubá-lo!! hehehehe, brincadeirinha!"

Então pegamos a conexão Paris-Dublin pela Ryanair e chegamos na "terra da cerveja", como diria uma amiga nossa e conhecida de muitos. Abrimos a porta, entramos no apê, tudo normal. "Puxa, o bilhete do PJ, tinha até esquecido! Vamos ver..."

Pane. Turbulência. Defeito. Erro fatal. Problema. Terremoto. Tsunami. Congelado. Frio. Medo. Amargura. Decepção. Solidão...

"Garotos, o que é isso? Um carrinho de supermercado??? Vamos nos livrar disso, por favor. Ass.: PJ"

Livrar
Mercado
Super
Isso
Livrar
Carrinho
...

Essas palavras ainda são lançadas em minha memória como se fossem agulhas.
Um carrinho de supermercado? Nos livrar DISSO? Nunca!! Quem ele pensa que é???

Nisso olhamos para o canto da sala e estava ali nosso carrinho, triste porém firme. Todo metalizado (o amor cura até eventuais ferrugens). Lindo como sempre. Ele disse que a culpa não era nossa, era dele. Ele agradeceu por tudo, disse que foi muito feliz, mas que passou. Ele disse que queria a nossa felicidade e queria o melhor pra nós. Ele agradeceu novamente. Ele disse que acabou.

No fundo não queríamos acreditar no que estava acontecendo, sabíamos que ele estava fazendo isso para salvar as nossas vidas, mas ele não cedeu. Foi bravo. Seguimos com ele até a Bolton Street. Atravessamos a Bolton Street. Avistamos um beco e uma marquise. Era ali, tinha que ser ali, protegido da chuva e dos nackers. Momentos e lembranças vieram à tona. Olhos marejados, desespero tomando conta. POR QUÊ?! Noite cheia de vida inútil...

Não tivemos coragem de olhar pra trás. Corremos de volta para o nosso apartamento. Nosso não, apartamento do PJ. Aquele ingrato que se aproveitoiu da nossa distancia para nos apunhalar pelas costas. Ah, mas um dia a vingança virá...

Ao menos as lembranças ficam. Carrinho, aonde quer que você esteja, saiba que a distancia não irá acabar com o meu sentimento por ti. Sinto saudades todos os dias e lembro-me de como fomos felizes, mesmo que por apenas um mês de convivencia próxima. Não sei se vou te encontrar novamente no futuro (é tudo o que eu sonho todos os dias), mas sei que me arrependo de não ter aproveitado mais o tempo que eu tinha contigo. Espero que tu esteja muito feliz e espero que eu tenha te feito feliz, pois tu é especial, tu é único e tu merece.

Beijos




3 comentários:

  1. acordei agora. 7:10 e automaticamente pensei 'puta merda. não vai dar tempo de ir pra aula, talvez rode mais uma vez por falta, mas então vou ler o que ele tem pra dizer'. sorriso no meu rosto de manhã bem cedo. genial

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  2. Pensei que tu já tinha largado a ufrgs de vez! Que bom que tu curtiu e melhor ainda que comentou =)
    Porque quando eu deixei o blog morrer voces me twittavam e agora que ele ta mais vivo do que nunca todo mundo some!!! Puta mundo injusto!

    =**

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  3. estou mais de 1 mês atrasada, mas eu disse que um dia ia colocar toda a leitura em dia!

    quase chorei!
    genial!
    não sei o que dizer.

    E concordo com os comentários da Jema, seus lindos.
    (L)

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